SOPROS DE RESILIÊNCIA DAS MONTANHAS - da função da poesia e da arte hoje -
- Chiara Mari
- 7 de out.
- 9 min de leitura

Abstract: Este artigo é uma reflexão poética, artística, espiritual, social e existencial sobre o lugar da poesia, da arte e dos poetas e artistas na sociedade contemporânea, assim como sobre as necessidades de resistência atuais, inspiradas na resiliência da fibra poética e artística oculta, que o trabalho da autora valoriza, pesquisa e desenvolve na prática[1].
O texto nasce de uma correspondência poética datada de 15.07.2025, entre Alagoinhas (Bahia), Lausanne (Vaud) e Gerra Verzasca (Ticino). É também uma revalorização da contemplação, da ancestralidade e da busca do essencial — elementos que a sociedade capitalista contemporânea tenta apagar e anestesiar, embora os povos originários, os núcleos familiares e as comunidades sigam testemunhando e cultivando outros regimes e temporalidades de desenvolvimento revolucionário.
[1] Chiara Mari, Fragmentos de eterna imensidão, Planeta Azul Editora, Rio de Janeiro 2025.
Chiara Mari, De raizes e de maré, axé. Helvetia Edições, Vevey, 2024.
Poesia como acesso ao Mistério e a re-Humanização
Cesare Pavese, em “Raccontare é come ballare” [1], nos lembra que o trabalho do poeta é frágil e ínfimo, porém mítico e grandioso, importante e revolucionário para humanidade. Os poetas colaboram “all’unicità del miracolo”, ou seja a procura do Princípio das coisas. “Fonte della poesia é sempre un mistero”, ou seja a fonte da poesia é sempre o mistério. Este misterio é compreendido no sentido de Adelia Prado: “ um fenômeno de unidade, de desvelamento do Real.... a poesia nos tira da cegueira[2]”. A poesia, ao nos tirar da cegueira, abre espaço para aquilo que a maioria ainda não vê - como também destaca Gershom Scholem ao analizar a Cabala judaica e sua mensagem ligada à beleza, à criação e à esperança[3]. A poesia e a poética revelam a condição original. Para mergulhar no mistério , compreendê-lo e escrevê-lo, Pavese nos lembra que é preciso desacelerar, respirar e... contemplar, para assim alcançar esse “stato aurorale”, ou seja, o estado auroral.[4].
Numa sociedade contemporânea capitalista e neoliberal, sobretudo na Europa e nas grandes cidades do mundo inteiro, essa capacidade está se tornando um recurso em extinção. As pessoas correm, correm, correm e, ao final da semana ou do mês, acabam estressadas e sentindo um vazio interior — apesar de tudo o que o capital lhes permitiu comprar ou fazer como forma de compensação. A Suíça, embora tenha reduzido significativamente a taxa de suicídio nos últimos anos e investido bastante na prevenção e na atenção ao bem-estar psicológico da população, continua sendo um dos países com uma das economias mais ricas do mundo — mas onde, na minha opinião, ainda se pode questionar a verdadeira qualidade de vida e de relações afetivas da população[5]. Paradoxos? Ou causa e efeito de uma sociedade que valoriza mais o dinheiro do que o tempo, o Mistério e a verdadeira qualidade de vida da população.Precisamos nos reapropriar do tempo.
“Tempo... Tempo... Tempo...
... Tempo
Lento
Vento
“SENSO dentro // sentido profundo” ... Centro ...”
Chiara Mari, 2025
Para conseguir nos reapropriar do tempo, Cesare Pavese lembra que é preciso também recuperar o que ele chama de “la capacità di stupirsi” — a capacidade de se surpreender. Essa mesma capacidade, em seu livro “Raccontare è come ballare”, ele conecta e nomeia como “ricchezza mitica”. Uma maravilha autêntica, que é a verdadeira riqueza[6].
Christian Bobin desenvolve esta reflexão com um foco mais poético no conceito de “la Présence pure”[7]: uma qualidade de presença e de relação própria ao poeta, uma contemplação do cotidiano que permite apreender a realidade como sempre nova, pura, boa, cheia de potencial e de esperança, tanto humanística quanto cristã. É a poética do cotidiano da Adelia Prado[8]: uma religiosidade que se aproxima mais de uma espiritualidade do dia a dia do que de uma tradição ou doutrina ligada a sistemas dominantes, que podem facilmente ser usados para manipular o subconsciente. Nesse sentido, concordo com Adélia Prado e sua experiência poética e religiosa do Mistério no cotidiano. Como ela destaca, o discurso da poesia é também o discurso da mística, na medida em que representa uma experiência profunda e interna, que transcende o sensorial e abre a possibilidade de ressignificar e recriar.
Esta capacidade é irmã da capacidade de se deixar tocar. Em psicologia e ciências sociais, falamos de empatia e de humanismo, conceitos explorados por autores como Edith Stein, que estudou a empatia como a capacidade de se colocar no lugar do outro[9], e Carl Rogers, que a destacou como compreensão profunda do outro, essencial para relações humanas autênticas[10]. A capacidade de se surpreender e a empatia permitem que o ser humano avance na reapropriação do tempo e do sentido do essencial, tornando a sociedade mais humana.
Em um mundo em que a pressão, o estresse, a violência estrutural, o racismo e o machismo se tornaram normalizados pelo sistema dominante, é preciso remobilizar o ser humano para se reapropriar do tempo, da capacidade de se surpreender e de ser empático. É assim que o ser humano pode se tornar mais humano — e a sociedade também.
Se deixar tocar implica a capacidade de se indignar, de ousar expressar sua opinião sem medo das consequências — uma qualidade de integridade e coragem que, hoje, embora a liberdade de expressão seja globalmente mais comum, está, na minha opinião, em perigo. As redes sociais, a globalização e uma certa forma de pensamento dominante, que se difunde sutilmente, assim como o individualismo crescente — pelo menos na Europa — contribuem para aniquilar uma disposição pessoal e interior que é essencial, e para a qual a poesia, a arte e nós, poetas e artistas, trabalhamos.
Essa coragem implica liberdade interior. Essa liberdade interior implica a capacidade de sonhar e de perseverar para transformar sonhos em realidade. Como Martin Luther King declamava: “I have a dream...”
Se deixar tocar implicar a capacidade a se indignar, a ousar expressar sua opinião sem ter medo das consequências. Uma qualidade de integridade e de coragem que hoje, embora a liberdade de expressão seja globalmente mais comun, é, na minha opinião, em perigo. As redes sociais, a globailização e uma certa forma de pensamento dominante que vai se difudindo subtilmente , assim como o individualismo alagante pelo meno na Europa, contribuem a anhilar uma disposição pessoal e interior que é essencial e para a qual a poesia, a arte e nós poetas e artistas trabalhamos.
Esta coragem implica liberdade interior. Esta liberdade interior implica a capacidade de sonhar e de perseverar para conseguir tornar sonho realidade. Como Martin Luther King declamava “I have a dream... // Tenho um sonho... ”:
“Não nos deixemos afundar no vale do desespero. Eu digo a vocês hoje, meus amigos, que mesmo enfrentando as dificuldades de hoje e de amanhã, ainda tenho um sonho. É um sonho profundamente enraizado no sonho americano. Eu tenho um sonho de que, um dia, esta nação se levantará e viverá o verdadeiro significado de seu credo: ‘Consideramos essas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais.... Eu tenho um sonho hoje.Eu tenho um sonho de que, um dia, todo vale será exaltado, todo monte e colina serão rebaixados, os lugares ásperos serão aplainados e os caminhos tortuosos serão endireitados, e a glória do Senhor será revelada, e toda a humanidade a verá junto.Esta é a nossa esperança... Que a liberdade ecoe de cada colina e montículo ... De cada encosta de montanha, que a liberdade ecoe.
E quando isso acontecer, quando permitirmos que a liberdade ecoe, quando a deixarmos ressoar de cada vila e aldeia, de cada estado e cada cidade, seremos capazes de acelerar o dia em que todos os filhos de Deus — homens negros e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos — poderão dar as mãos e cantar, com as palavras do antigo espiritual negro: “Finalmente livres! Finalmente livres! Graças a Deus Todo-Poderoso,
finalmente somos livres!”[11].’”
E hoje? Quem ainda sonha como Martin Luther King? Quem ainda cultiva a capacidade de sonhar, a coragem de lutar e de transformar a sociedade com essas atitudes, mesmo na Europa?
No último espetáculo da maravilhosa Dimitri’s School em Verscio, Suiça italiana, a personagem principal, Robinia — numa magistral personificação feminina de Robin Hood, protetora do território histórico ancestral das Centovalli — é encarregada de zelar pela justiça do vale e proteger seus habitantes contra invasões. E, em sua missão, declama:
“Me dizem que sou boa demais para este mundo... Eu respondo:
“Allora dobbiamo renderlo ....migliore” ou seja “Então temos que tornar-o melhor”
Na minha opinião, o trabalho de nós, poetas e artistas, deve também contribuir para a construção de um mundo melhor: Beleza – Bondade – Justiça. Uma tríade que se revela ainda mais potente quando mobilizada. François Cheng[12] já nos mostrou, na tradição oriental, como o Belo e o Bom estão profundamente ligados. Precisamos redescobrir essa potência e essa verdade também no Ocidente.
A verdadeira arte é aquela que é boa e justa, capaz de mover, transformar e inspirar, carregando em si um poder social e revolucionário.
Luta, Chiara Mari, 60x60cm, acrilico
Re-humanização e coragem de determinaçao ancestral:
“Il vento sussurra...
Il fiume mormora...
La forza infima, minuscula, fragile e visionaria, cosi’ come la vita quasi centenaria
di chi ha osato seminare, perseverato nel raccogliere e sognato nel trasmettere,
nel far durare...
Ancestralidade corajosa,
determinada e fructuosa...
Sabedoria da terra, poder ancestral mais forte
do que a guerra!
Semear, plantar, colher, transmitir e construir com Coragem e Verdade do Ser ...”
Chiara Mari, 2025
Gerra Verzasca, 2025
A ancestralidade da minha linhagem feminina revela uma força e uma determinação que nos guiam — poetas e artistas — por caminhos árduos e ambiciosos. Perseverar… plantar… e, um dia, colher… Transformar, impactar, fazer reviver, criando um mundo mais belo, mais justo, mais humano.
São ancestralidades que precisamos redescobrir, revalorizar, para entrelaçar os fios do presente e do passado, avançando de maneira consciente, sensível e significativa. Entre territórios e afetos, entre vínculos antigos e novas possibilidades, devemos cultivar um futuro ensolarado, iluminado pelos tesouros do que nos foi legado.
Chiara Mari, 60x60cm, acrilico e tecnica mixta, 2025
Que seja um futuro ensolarado, inspirado do Fogo ancestral potente e transformador!
“Ti aspetteró intorno al fuoco[13]”
Antonello Venditti
Conclusão
Todos por igualdade:
Poema dos jovens Cristian dos Santos Damasceno, Lavínia Silva Pereira, Raissa de Jesus Souza,
Vinícius dos Santos Gonçalvez[14]
“Nas páginas da história,
Um brilho especial.
Negros, tesouro sem igual
Força e coragem,
resistência a se revelar,
celebrando a cultura,
é hora de exaltar.
Com orgulho e amor,
A negritude se expressa derrubando barreiras, mostrando sua nobreza.
Dança, música e arte,
Enchendo o coração, contando a história com pura emoção.
Consciência é luz, que ilumina o caminhar
Inspirando gerações, o mundo transformar.
Nas veias correm lutas, resistência,
Força e resiliência
No peito orgulho , ancestralidade
Raizes profundas
Garra e coragem”
Al final, ancestralidades comuns... porque somos todos UM!
Chiara Mari, 30.08.2025
Em homangem á minha avô Marina Foletta, nativa de Gerra Verzasca, cidadã valente
e mulher da terra valente.
Bibliografia:
Carl Rogers, Client-Centered Therapy: Its Current Practice, Implications, and Theory. Boston: Houghton Mifflin, 1951.
Cesare Pavese, Raccontare é come ballare, Wudz, Arezzo/Milano, 2024.
Chiara Mari, Fragmentos de eterna imensidão, Planeta Azul Editora, Rio de Janeiro 2025.
Chiara Mari, De raizes e de maré, axé. Helvetia Edições, Vevey, 2024.
Christian Bobin, La Présence pure, Poésie Gallimard, Paris, 1999.
Edith Stein,. Über Empathie: Ein Beitrag zur Phänomenologie der inneren Erfahrung. Halle: Niemeyer, 1917.
Frei Betto, Leonardo Boff, Mística e espiritualidade, 6 Ed. Rio de Janeiro, Garamond, 2008
François Cheng, 5 méditations sur la beauté, Albin Michel, Paris, 2006.
Gershom Scholem, Le Zohar: le livre de la splendeur, Editions du Seuil, Paris, 2011.
MAHFOUD, M. ; MASSIMI M, (Org), Diante do mistério: psicologia e senso religioso. São Paolo: Loyola. 1999
Milan Kundera, Questa insostenibile leggerezza dell’essere, Adelphi, Milano, 1989.
Rainer Maria Rilke, Lettere ad un giovane poeta, Adelphi, Milano, 1980.
Silvana Abreu e Gustavo Muniz Barbosa de Souza, Negritude em versos, Scortecci Editora, São Paolo, 2024.
Web:
https://www.bag.admin.ch/fr/donnees-sur-les-suicides-et-les-tentatives-de-suicide-en-suisse, 29.08.2025.
O mistério e o cotidiano na poesia de Adélia Prado | Vida Pastoral , https://share.google/cw2KPpOx6MCKPYL03 , 29.08.2025.
I have a dream, Martin Luther King: https://static.pbslearningmedia.org/media/media_files/Full_text_I_Have_a_Dream_.pdf, 29.08.2025.
Música:
Antonello Venditti, Questa insostenibile leggerezza dell’essere.
Antonello Venditti, Miraggi.
[1] Cesare Pavese, Raccontare é come ballare, Wudz, Arezzo/Milano, 2024.
[2] O mistério e o cotidiano na poesia de Adélia Prado | Vida Pastoral , https://share.google/cw2KPpOx6MCKPYL03 , 29.08.2025
[3] Gershom Scholem, Le Zohar: le livre de la splendeur, Editions du Seuil, Paris, 2011
[4] Cesare Pavese, Raccontare é come ballare, Wudz, Arezzo/Milano, 2024.
[5] https://www.bag.admin.ch/fr/donnees-sur-les-suicides-et-les-tentatives-de-suicide-en-suisse, 29.08.2025.
[6] Cesare Pavese, Raccontare é come ballare, Wudz, Arezzo/Milano, 2024.
[7] Christian Bobin, La Présence pure, Poésie Gallimard, Paris, 1999.
[8] O mistério e o cotidiano na poesia de Adélia Prado | Vida Pastoral , https://share.google/cw2KPpOx6MCKPYL03 , 29.08.2025
[9] Edith Stein,. Über Empathie: Ein Beitrag zur Phänomenologie der inneren Erfahrung. Halle: Niemeyer, 1917.
[10] Carl Rogers, Client-Centered Therapy: Its Current Practice, Implications, and Theory. Boston: Houghton Mifflin, 1951.
[11] https://static.pbslearningmedia.org/media/media_files/Full_text_I_Have_a_Dream_.pdf 29.08.2025.
[12] François Cheng, 5 méditations sur la beauté, Albin Michel, Paris, 2006.
[13] Te esperarei perto da fogueira. Extrato da música do cantor italiano Antonello Venditti.
[14] Silvana Abreu e Gustavo Muniz Barbosa de Souza, Negritude em versos, Scortecci Editora, São Paolo, 2024, p.37.




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